É Ouro de tolo como chamam? Quando você pensa que no pior momento do seu dia você se dá bem, o danado do destino vem e ri bem na sua cara!
Minha família ganhou ingressos para uma noite de gala no Teatro Municipal. Um balé famoso seria apresentado, mas aquilo era um mundo completamente fora do meu universo. Eu sou um homem simples, e, para ser sincero, a ideia de conhecer aquele espaço me empolgava muito mais do que a apresentação em si. A grandiosidade e a história do lugar pareciam atrair algo em mim que eu mal sabia explicar.
Dentro de casa, horas antes do evento, o caos se instalou. Minha irmã corria de um lado para o outro tentando organizar os sobrinhos, que pareciam feitos de vento, nunca paravam no mesmo lugar. Meu pai era pura animação – parecia até mais ansioso que as crianças, polindo incessantemente os sapatos que usava apenas em casamentos ou batizados. Eu observava o alvoroço e me lamentava, triste, pela ausência de minha noiva, eu sabia que ela adoraria se vestir de forma elegante para uma ocasião como essa.
Quando finalmente saímos, já estávamos todos arrumados e ligeiramente exaustos. Mas essa sensação logo se dissipou quando chegamos ao centro da cidade e avistamos o Teatro Municipal. Eram 19h, e o céu começava a escurecer, criando o pano de fundo perfeito para a iluminação dourada que envolvia o edifício.
De longe, ele parecia flutuar, majestoso. Suas colunas imponentes erguiam-se como guardiãs de uma época em que tudo era feito para durar. Esculturas e detalhes ornamentados pareciam contar histórias que não precisavam de palavras. Entre os prédios modernos que o cercavam, o Teatro era um santuário de outra era, um lugar onde o tempo parecia pausar, reverente.
No estacionamento, as pessoas desciam de seus carros com elegância e sofisticação. Mulheres exibiam vestidos deslumbrantes, repletos de brilho e movimento, enquanto homens ajustavam paletós e gravatas com gestos ensaiados. Aquela era uma cena que poderia estar numa revista de luxo, mas ali estava eu, parado, um pouco deslocado, mas encantado.
Mal tivemos tempo de nos organizar. Assim que o carro parou, meus sobrinhos dispararam porta afora, como se o teatro os tivesse chamado pessoalmente. Minha irmã quase perdeu a compostura gritando para que voltassem. Nada feito. Eles corriam em direção ao imenso prédio com a energia de quem está explorando um mundo novo, sem se importar com olhares ou regras.
Enquanto isso, fiquei um momento parado ao lado do carro, absorvendo tudo. Meu pai, com o terno que parecia dois números maior que o ideal, ajeitou o chapéu com um sorriso que mal cabia no rosto. Minha irmã finalmente conseguiu reunir os sobrinhos, resmungando algo sobre “não saber mais o que fazer com eles”, mas no fundo, havia um brilho de orgulho em seus olhos.
Cruzamos a calçada rumo à entrada principal. Eu sentia o mármore frio da escadaria sob os sapatos e olhava para cima, fascinado pelas luzes, pelos detalhes, pela história daquele lugar. O Teatro Municipal não era só um prédio, era uma promessa de que, naquela noite, nós também faríamos parte de algo maior do que nós mesmos.
O interior do Teatro Municipal era simplesmente magnífico, uma obra de arte que parecia ter sido criada para deslumbrar até o mais insensível dos homens. O teto era altíssimo, adornado por afrescos que contavam histórias antigas, pinceladas que narravam batalhas, celebrações e tragédias. Lustres de cristal pendiam no centro, derramando uma luz suave que refletia em cada detalhe dourado das colunas que sustentavam o salão. O chão, feito de mármore polido, parecia um espelho, capturando o brilho dos candelabros e os passos cuidadosos dos convidados.
Demoramos a encontrar o acesso à nossa galeria. Os corredores sinuosos, com paredes revestidas de madeira trabalhada e detalhes dourados, formavam um pequeno labirinto. Era fácil se perder se alguém se distraísse com a beleza dos ornamentos ou com as pinturas que decoravam cada curva do caminho. As placas discretas indicavam os setores, mas a grandiosidade do local fazia parecer que a direção era um detalhe menor.
Finalmente, chegamos à antessala da nossa galeria. O espaço era amplo, iluminado por arandelas que pareciam feitas de ouro e vidro. Ali era servido champagne, e o aroma suave da bebida misturava-se ao leve perfume das flores que adornavam os aparadores. Minha mãe, encantada, correu para pegar uma taça, rindo como uma menina que encontra um tesouro. Meu pai, contagiado pela animação dela, foi logo atrás, como se também tivesse descoberto algo especial.
Eu, parado à entrada, deixei meu olhar vagar pelo ambiente. A riqueza de cada detalhe era impressionante. Móveis de madeira nobre com estofados luxuosos espalhavam-se pelo salão; as cortinas, de um veludo vermelho profundo, pendiam dos arcos das janelas altas, que deixavam a luz da cidade entrar timidamente. Contudo, nenhuma dessas maravilhas conseguiu segurar minha atenção por muito tempo.
Foi então que eu a vi.
Uma jovem, trajada de um uniforme rubro que parecia desenhado para um filme noir, caminhava pelo salão com uma elegância que contrastava com a correria dos garçons e o burburinho dos convidados. O corte de sua roupa era impecável, ajustado ao corpo de forma a destacar a linha dos ombros e a cintura fina. Um chapéu elegante, com uma aba inclinada e discreta, lembrava o estilo das aeromoças de décadas passadas.
Seus cabelos estavam meticulosamente presos em um coque no alto da cabeça, um penteado simples, mas que parecia perfeito para ela. O batom, de um vermelho comedido, realçava o tom pálido da pele e harmonizava com o tecido do uniforme. Porém, o que realmente me fez perder o fôlego foram seus olhos. De um negro profundo, eram expressivos, com um brilho que me fez esquecer a beleza ao meu redor. Por um momento, era como se tudo ao meu redor tivesse desaparecido. O luxo do Teatro, os lustres de cristal, o mármore sob meus pés – nada parecia importar. Apenas ela.
Eu sei que, quando me viu, ela abriu um sorriso. Não era um sorriso comum, desses que se distribuem com facilidade para os convidados. Não. Era um sorriso trêmulo, marcado por um nervosismo discreto, quase imperceptível para quem não estivesse prestando atenção. Mas eu estava.
Havia algo de intrigante em sua expressão. O rosto sorridente parecia lutar para manter a compostura, e aquele sorriso, que deveria ser um gesto de cortesia profissional, carregava um peso. Era falso, forçado – mas ainda assim fascinante. Ela me olhava de um jeito que me fazia sentir exposto, como se estivesse prestes a descobrir algum segredo meu que nem eu mesmo sabia que existia.
Era como se o pecado tivesse ganhado forma humana, me chamando, com sutileza e sedução, para uma traição imaginária. Meus pensamentos se dividiam entre o encanto e o constrangimento. Eu não sabia se desviava os olhos para escapar ou se permanecia imóvel, absorvendo cada instante daquela troca silenciosa.
Enquanto recepcionava os outros convidados, ela parecia se mover com uma naturalidade graciosa, oferecendo a todos sua atenção. Fazia o favor de entretê-los, lançando pequenos comentários e sorrisos como uma anfitriã que busca acalmar a ansiedade antes do início da peça. Mas, sempre que o fluxo de pessoas diminuía, seus olhos voltavam para mim.
E então, era minha vez de me perder.
Quando nossos olhares se encontravam, algo acontecia. Cada expressão que eu fazia parecia ser lida e respondida por ela, como se estivéssemos jogando um jogo secreto. Uma leve inclinação de cabeça, uma sobrancelha levantada, e ela respondia – mais iluminada, mais confiante. Era como se, por instantes, todo o teatro sumisse, e apenas nós dois existíssemos naquele espaço.
Por várias vezes, cogitei ir até ela. O impulso quase me dominava, mas eu hesitava. Meu coração pulsava rápido demais, e minha mente não parava de repetir a mesma pergunta: “Será que ela me conhece? Será que nos cruzamos antes e eu não a estou reconhecendo?” Mas isso era impossível. Eu sabia disso com uma certeza absoluta. Se eu tivesse visto essa mulher, em qualquer lugar, em qualquer momento da minha vida – ou até mesmo em outra vida – eu jamais a teria esquecido.
O primeiro sino ecoou pelo teatro, ressoando como um chamado cerimonioso. Convidava a todos para tomarem seus assentos, e os murmúrios no salão começaram a se dissipar, substituídos pelo som de passos apressados e tecidos esvoaçantes. As crianças pareciam finalmente vencidas pelo cansaço, andando com a energia diminuída, ainda que os olhos continuassem curiosos.
Minha família e eu fomos conduzidos à galeria reservada para os convidados mais distintos, um espaço que me fez sentir, mesmo que por um breve instante, alguém especial. Ao me acomodar, não pude evitar um pensamento: quantas personalidades históricas, figuras que moldaram o tempo, já haviam ocupado aqueles mesmos lugares, assistindo a espetáculos de igual grandiosidade?
O deslumbre desse devaneio, no entanto, não durou muito. Meu pensamento insistia em voltar para ela. A moça de uniforme rubro. Sua imagem parecia gravada no fundo da minha mente, e, mesmo com o folhetim da peça em mãos, os detalhes do balé pareciam não prender minha atenção.
O segundo sino soou. As luzes do teatro diminuíram gradualmente, mergulhando a plateia em uma penumbra respeitosa. Quando o relógio marcou a hora exata, a cortina foi erguida, revelando o palco iluminado. Os bailarinos entraram em cena com uma leveza que desafiava o peso do corpo humano. Moviam-se como se fossem parte da música, que era tocada com maestria por uma orquestra completa. Cada acorde parecia ecoar não apenas nos ouvidos, mas no peito, preenchendo o espaço com uma vibração sublime.
Ao meu lado, meu pai, que antes estava cheio de entusiasmo, agora dormitava tranquilamente, a cabeça pendendo para o lado. Minha irmã, com uma expressão cansada, lutava para manter as crianças em silêncio, lançando olhares de advertência sempre que uma delas se remexia na cadeira. Já minha mãe, dividida entre o deslumbre do espetáculo e a necessidade moderna de registrar tudo, olhava fascinada para o palco enquanto mexia freneticamente no celular, escolhendo o melhor ângulo para suas fotos.
Quanto a mim, embora meus olhos seguissem os bailarinos e a harmonia das luzes e da música me envolvesse, minha mente parecia presa em outro lugar – ou melhor, em outra pessoa. Será que ela também estava assistindo à peça? Será que, naquele momento, enquanto eu tentava focar no espetáculo, ela me observava de algum canto discreto do teatro?
A orquestra subiu um tom, e o palco foi tomado por uma sequência de movimentos impressionantes, mas nada disso parecia capaz de arrancar a imagem dela da minha cabeça. O Diabo atormentava minha mente. Era como se eu pudesse sentir sua mão invisível sobre meu ombro, a voz maliciosa sussurrando ao meu ouvido, ordenando que me levantasse dali e fosse pegar um champagne. Tentei resistir. Meus olhos voltaram ao palco, mas a música e os movimentos graciosos dos bailarinos já não me tocavam. Tudo que eu via, tudo que eu sentia, era aquele chamado. Eu era a angústia.
Olhei para trás, disfarçadamente, e vi as cortinas vermelhas, espessas como um véu, separando a sala principal da antecâmara. Não havia nenhuma razão lógica para ir até lá. Mas o desejo, ou talvez algo maior, ou pior, me puxava. Sem pensar demais, me levantei. Meu movimento foi silencioso, e ninguém na minha família parecia notar. Meu pai continuava dormindo, minha irmã brigava baixinho com as crianças, e minha mãe, absorta, ainda registrava o balé com o celular.
Caminhei pelo corredor, sentindo uma mistura de nervosismo e excitação. Ao passar pelas cortinas, entrei novamente na antecâmara. O ambiente estava vazio. Os convidados haviam tomado seus assentos, e restavam apenas algumas taças de champagne cuidadosamente dispostas sobre o aparador de madeira escura. O som da orquestra ecoava ao longe, abafado pelas paredes e cortinas grossas, como se viesse de outro mundo.
Peguei uma das taças e bebi devagar, deixando o líquido gelado deslizar pela garganta. O silêncio, misturado com a música distante, criava um estranho contraste. Por um momento, senti-me calmo, como se o peso daquela obsessão estivesse começando a se dissipar.
Mas então, o som de saltos ecoou pelo corredor.
Virei-me na direção do barulho, o coração disparando, sem saber o que esperar. E naquele instante, o mundo desapareceu.
A música cessou, o brilho suave das arandelas pareceu se apagar, e todo o ambiente ao meu redor foi engolido por algo que não consigo descrever. Tudo o que restava era ela.
A moça.
Jovem, vestida com o uniforme rubro impecavelmente engomado, suas curvas realçadas pelo corte perfeito do tecido, caminhava em minha direção. Seus olhos negros, profundos como um poço sem fim, fixaram-se nos meus, e seu rosto, quase inexpressivo, parecia carregar um mistério insondável.
Eu não conseguia desviar o olhar. Seus passos desaceleraram, e, por um instante, ela parou a poucos metros de mim. Era como se o tempo estivesse congelado. Minha respiração tornou-se pesada, e todo o meu corpo parecia preso em uma tensão que não era medo, nem desejo – era algo além disso.
Ela ficou ali, me observando. Não disse uma única palavra, mas, de alguma forma, era como se falasse diretamente comigo. Sua mão delicada, com unhas perfeitamente desenhadas, ergueu-se até o primeiro botão dourado do uniforme. O movimento era lento, quase ritualístico. Cada instante parecia ampliado, como se o tempo tivesse sido esticado para dar espaço àquele gesto. O botão deslizou pela casa de tecido, libertando-se com suavidade, revelando um pequeno trecho de sua pele pálida e impecável.
Sem aviso, ela se virou, as costas agora voltadas para mim. A curva de suas ancas, realçada pelo caimento impecável do uniforme, prendeu meu olhar. Seus passos se aceleraram, mas ainda assim mantinham a graça. Ela caminhou até um canto da antecâmara, onde suas mãos moveram as cortinas pesadas, revelando um corredor escondido. Ela parou por um instante e lançou-me um último olhar. Não havia palavras, mas aquele gesto era mais eloquente do que qualquer frase: um convite silencioso, irresistível. Antes que eu pudesse reagir, ela desapareceu, engolida pela penumbra do corredor. Meu corpo agiu antes da razão. Como que hipnotizado, segui-a pelo caminho escondido, adentrando o corredor estreito e pouco iluminado. O cheiro de umidade era forte, quase sufocante, e as paredes de pedra pareciam sussurrar segredos antigos.
Ela estava lá. Parada. Esperando.
Seus olhos negros me encaravam com uma intensidade que me tirava o fôlego, e sua postura, ao mesmo tempo serena e predatória, fazia cada célula do meu corpo gritar em alerta. Não havia dúvida: ela estava sedenta. Pronta para me devorar.
A vampira atacou-me com a precisão de um bote. Seus braços se fecharam ao meu redor, e seus lábios capturaram os meus em um beijo sufocante, intenso, como se roubasse não apenas meu fôlego, mas também minha vontade. Uma energia incontrolável começou a borbulhar dentro de mim, algo primal, que chamava por minha masculinidade, forçando meu corpo a responder de maneira inevitável; me fazendo ereto.
Seus seios pressionavam-se contra o meu peito, quentes, enquanto o calor de sua carne parecia se misturar à minha. Sua saia, agora levantada, permitia que suas pernas se enroscassem ao redor do meu corpo, mantendo-me preso como em um feitiço. Minha coxa tocava o calor e a umidade de seu pecado, cada sensação era amplificada pelo frenesi daquele momento. Sua língua invadia minha boca em um balé particular, dominando o palco com força e precisão. Os sons que fazíamos eram uma sinfonia abafada de murmúrios roucos, beijos famintos e o gosto metálico do batom arrancado que agora impregnava nossos lábios.
O frenesi crescia, me cegava, me fazia perder o juízo. Ela então parou abruptamente, mas de maneira fluida, quase felina. Com um movimento sinuoso, abaixou suas meias finas e, em seguida, uma peça íntima preta que parecia tão misteriosa quanto seus olhos. Suas curvas perfeitas se revelaram, e o desenho de sua pele, seus pelos delicadamente aparados, eram uma obra de arte de erotismo.
Ela virou-se de costas, apoiando as mãos contra a parede fria, empinando-se em uma oferta clara e convidativa. Suas nádegas, redondas e perfeitas, estavam ali, prontas para me receber como seu homem. O momento era devastador. Meu corpo clamava por ela, enquanto minha mente lutava contra a explosão de desejo. E então, algo dentro de mim acendeu. Uma luz bruxuleante, como uma vela que insistia em não apagar, sussurrou o nome de outra pessoa. O amor que eu sentia por alguém distante me alcançou naquele corredor escuro, como uma âncora que me puxava de volta à razão.
Recuei, sentindo meu coração dividir-se em dois. Ela permaneceu ali, ainda em sua posição, uma imagem de desejo que eu sabia que jamais esqueceria. Mas eu não podia. Não podia trair aquilo que ainda ardia dentro de mim.
— Desculpe, eu amo outra pessoa. Preciso ir — murmurei, a voz rouca, carregada de conflito.
Afastei-me rapidamente, deixando para trás a mulher que me oferecia seu corpo como se o destino nos tivesse unido ali. Não era covardia; era a sombra de algo maior, algo que eu não podia negar.
Não voltei para o teatro. Não havia mais espetáculo que pudesse me prender naquela noite. Desci as escadas para a porta principal, onde a noite da cidade me aguardava, fria e deserta.
O mestre do salão, um cavalheiro de expressão serena, me viu sair e aproximou-se com uma cordialidade polida:
— A noite não está do agrado do senhor?
Acendi meu cigarro e dei uma longa tragada antes de responder:
— Esse foi o problema. Estava.