Capítulo 14
Eu podia ter chorado, mas não chorei. Eu podia ter dito qualquer coisa, mas a raiva travou minha língua. Um ódio enorme subiu dentro de mim, daqueles que a gente sente no osso, quente e venenoso. Nana ia me pagar por aquele tapa.
Peguei minha mochila, deixei minha calcinha pra trás e fui embora sem olhar pra trás. No instante que botei o pé pra fora, ela percebeu que fez merda e tentou falar comigo.
— Lelê, espera…
— Não me segue não! — cortei, seca.
Minha cara devia estar um demônio, porque Nana ficou parada, pálida, com aquele olhar de quem sabe que fodeu. Eu não ia esquecer disso.
Passei pela cozinha sem pressa, a cabeça latejando de raiva. Abri a geladeira e puxei a garrafa de vodka, gelada na minha mão suada. Dei um gole demorado, sentindo a bebida rasgar minha garganta como fogo. Fiz uma careta e engoli. Depois derramei um pouco na minha blusa, esfreguei pra espalhar bem e deixei o cheiro subir.
Pronto. Agora sim.
Nana ia ver o que era bom pra tosse.
Saí pela porta, sentindo o ar frio bater na cara. Meu coração tava disparado, mas eu me obriguei a andar devagar, sem correr. Espiei de canto de olho pra ver se ela vinha atrás. Nada. Ótimo. Peguei o celular com os dedos tremendo e liguei pra casa. No segundo toque, minha mãe atendeu. Eu fechei os olhos por um segundo e entrei no personagem.
— Bãe… Ô Bãenheeeeê…
Fiz a voz pastosa, embolada, arrastei as palavras como se minha boca tivesse pesada. Dei uma risadinha idiota no meio, do jeito que bêbado faz quando tenta parecer normal.
— Letícia? Filha? O que tá acontecendo?
Fiz uma pausa dramática e soltei um soluço falso.
— Tá tudis Bão! Hehehehe… tô tããão feliz, bãe… a sinhá tá em casa? Hic!
— Que? Que sinhá, Letícia? Você tá onde?!
Balancei a cabeça como se ela pudesse me ver, deixando a voz enrolar mais ainda.
— Ahhhh sei lá, eu tava na casa da Nana né… mas depois… eu… ai, eu vim embora… no Uberes! Hic!
— O quê?! Cadê a Juliana? Por que você não tá com ela?
Fiz um barulho como se tivesse tentando focar, mas sem conseguir.
— Ahhhhhh Nana… Nana… ai, bãe… num sei, num sei mais nada…
E desliguei o telefone.
Fazia parte do meu plano. Eu não tava bêbada coisa nenhuma, mas queria deixar meus pais tensos, bem nervosos, bem preocupados. Criar o clima perfeito pro meu grande ato.
Quando o elevador abriu, eu mal consegui dar um passo pra fora e já ouvi a porta da minha casa escancarando com tudo. Meus pais apareceram na porta, um do lado do outro, duros que nem pedra, me olhando de um jeito que eu quase ri.
Eles não faziam escândalo em público. Não iam me arrastar pelos cabelos ali no corredor. Então, eu entrei rindo, tropeçando levemente no tapete de propósito, como se não tivesse feito nada de errado.
A porta bateu atrás de mim, e minha mãe veio com tudo:
— Letícia, você bebeu?!
Pisquei devagar, inclinando a cabeça pro lado, forçando a língua pesada.
— Bebi? Hihihi… Maaãe, só um pouquiiiinhooo… Mas ó… hic! Passei mal, viu? Vomitei tuuudoooo, foi horríííveeel! — arrastei a voz, torcendo o rosto numa careta dramática, balançando a mão como se afastasse um cheiro ruim.
Minha mãe cruzou os braços.
— Quem te deu bebida?!
Eu abri bem os olhos, botei a mão no peito e arregalei a boca como se fosse contar um grande segredo.
— A… a Nana… — falei baixinho, como se fosse uma revelação muito séria. — Ela dissse que… que se eu bebesse, eu ia ser uma pessoa mais legal! E eu só queeero ser uma pessoinha legal, mãããeee…
Fiz um bico e deitei a cabeça no ombro dela, como se fosse uma criança carente.
— Você é uma pessoa legal, mãããe?
Ela se afastou, respirando fundo. Eu sabia o que estava fazendo. Sabia exatamente o que dizer pra mexer com eles. Quantas vezes eles não me deram o sermão de que “quando alguém te oferece bebida, vai dizer que é pra você ser mais legal”? Pois é.
Meu pai pegou o celular e começou a discar.
— Eu vou ligar pros pais dela.
Me joguei em cima do braço dele, segurando o telefone com as duas mãos.
— Nãããão, pai! Ela vai me chamar de caguetaaa!
Meu pai bufou e me soltou. Minha mãe cheirou o ar e fez uma careta.
— Juliana, você tá fedendo a álcool! Quanto você bebeu?!
Franzi as sobrancelhas, fingi que tava contando nos dedos, depois abri os braços bem exagerado.
— Ihhh mãããe… Sei láaa… Uma garrafa? Uma dessa… grandonaaaa?
Ela arregalou os olhos e juntou as mãos na boca.
— Meu Deus do céu… Vai tomar um banho, filha, o pai vai pegar alguma coisa pra forrar seu estômago.
Não. Eu não queria que eles ficassem preocupados. Eu queria que ficassem putos.
Dei um passinho pra trás, tropeçando na própria perna, e murmurei, manhosa:
— Nãão posso, pai… Eu tenho que… hic! Voltar láaa…
Meu pai explodiu.
— Você não vai voltar, Letícia!
Pronto. Era a minha deixa.
Fiz uma cara de preocupação, arregalei os olhos como se tivesse lembrado de algo MUITO importante e puxei minha saia pra cima, mostrando bem a falta de tecido ali embaixo.
— M-mas paaaai… Eu… eu… esqueci minha calcinha láááá!
Meu pai virou a cara na hora, minha mãe botou as mãos no rosto.
— Letícia, por que você tá sem calcinha?!
Fiz um bico, dei de ombros.
— Ué… Porque eu esqueci lá, néééé?
— Mas por que você tirou a calcinha?! — meu pai já tava fervendo.
Cruzei os braços, fiz cara de pensativa e soltei, como se fosse óbvio:
— Elas tiraraaaam, uai.
O silêncio bateu forte na sala.
Minha mãe se aproximou devagar, como se tivesse pisando em vidro.
— Elas… tiraram por quê, Letícia?
Pisquei devagar, me encolhi um pouco e soltei num tom inocente, arrastando as palavras como se não tivesse nada demais:
— P-pra chupaaaarem minha periquitaaa…
O ar sumiu.
Meu pai apertou o telefone com tanta força que achei que ia quebrar. Minha mãe ficou dura, de boca aberta, piscando rápido como se não tivesse entendido direito.
— E você deixou essa porra acontecer?! — meu pai berrou.
Fiz uma cara muito ofendida, como se tivesse sido injustiçada.
— Nããão, paiii! Eu falei que… hic! que não queria, e a Juliana me deu um tapa pra eu me comportar…
Minha mãe arfou.
— Filha… por isso que seu rostinho tá vermelho desse lado?
Eu não tinha visto isso ainda. Me virei pro espelho da entrada e… nossa. Tava inchado, bem marcado. Eu sou branca demais, qualquer coisa aparece.
Meu pai cerrou os punhos, fervendo.
— E depois, filha? O que aconteceu depois?
Eu olhei pra ele, pisquei devagar, fiz um biquinho, joguei a cabeça pro lado como se estivesse pensativa… e então sorri.
— Depois? Eu… eu me comporteeeei!
E soltei uma risadinha boba.